Reflexões de quem conta histórias...

Este texto é uma reflexão sobre os fundamentos teórico-metodológicos do trabalho que tornou possível a formação e acompanhamento da ação de 53 mediadores de leitura, no município de Várzea Paulista. O principal corpus desta reflexão foi o depoimento (escrito) dos mediadores de leitura formados pelo Projeto ContoEncanto, uma parceria entre a prefeitura de Várzea através da Secretaria de Educação e do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente e a Petrobrás.



O que é mediação de leitura



“Que meu conto seja belo
e se desenvolva como um longo fio...”[1]
                                                      





 Imaginemos uma visita à Biblioteca Municipal de Várzea Paulista na companhia de uma criança que ainda não domina a língua escrita. Entre todos os livros dispostos na estante, um nos chama atenção. O título é conhecido e nos remete à história que, na nossa infância, saiu da boca da avó, por exemplo. “Puxa, eu conheço essa história!” ̶ dizemos. A criança, curiosa, pede para ouvi-la. O livro é deixado de lado, não nos preocupamos com as palavras impressas, e sim, com as imagens — das personagens, dos cenários e das situações da história — que vão desfilando à nossa frente na medida em que contamos. A partir dessas imagens rememoradas, o fio da narrativa vai se desenrolando na imaginação do nosso pequeno ouvinte, por meio da voz, dos gestos, do olhar e da nossa presença no espaço.

Nessa situação, a teatralidade está presente não apenas nas linguagens não verbais, mas também nas palavras que compõem a narrativa. Essa afirmação pressupõe que, ao percorrer as imagens do conto, o narrador surpreende-se com a forma na qual este se materializa (transforma-se em palavras) em sua boca. Dito de outra maneira é na relação narrador-ouvintes que a história vai sendo tecida. Mesmo que os contos narrados sejam retirados dos livros, contar histórias é uma atividade coletiva e pertence ao universo da oralidade.



Continuemos nossa visita imaginária à Biblioteca Municipal. Somos atraídos por outro livro. Talvez por conta da capa, do autor ou do título, mas não pelo conteúdo, que é desconhecido. A criança que nos acompanha também fica interessada e pede para lermos o livro em voz alta[2]. Outras crianças se aproximam para ouvir a história. Nossas mãos seguram o livro e nossos olhos fixam-se nas palavras que ganham sentido ao serem publicadas pela voz. Esta é uma situação de leitura pública, na qual o texto é desconhecido tanto pelo emissor quanto por seus receptores.



Em outro momento da nossa visita à Biblioteca, ainda com a criança ao nosso lado, olhamos novamente a estante e encontramos um livro que nos pede para ser revisitado. Não apenas a capa, o autor e o título são familiares. O texto é conhecido e, entre tantos livros na estante, este é cuidadosamente escolhido a fim de entreter nosso ouvinte. As mãos continuam dando suporte ao texto, mas os olhos percorrem as páginas que, por serem conhecidas, liberam-nos para interagirmos, mesmo que pontualmente, com os olhares ávidos do público. Digo pontualmente, porque a liberdade de interação com os ouvintes através da gestualidade e do olhar só é completa quando um texto preexistente é dito decor. É o caso da declamação de uma poesia, recitação de textos escritos na forma de cordel, da literatura dramatúrgica ou de algumas fórmulas narrativas que se caracterizam pelo prazer de ouvir, repetidas vezes, as mesmas palavras. Reproduzo aqui uma dessas pequenas histórias de enrolar (Pamplona, 2005):


“Era uma vez um rei

sentado no sofá

que pediu para a sua babá

que contasse uma história.

A história começou:

Era uma vez um rei

sentado no sofá...”

De fato, em uma situação de transmissão vocal sem a presença do texto, é a voz do intérprete, por si só, que lhe confere autoridade. A escritura permanece escondida. Ao contrário, se o emissor retira do livro presente em suas mãos, “o que os ouvintes escutam, a autoridade provém do livro como tal, objeto visualmente percebido no centro do espetáculo performático” (Zumthor, 2001, p.19). Esta última é a atividade privilegiada pelo Projeto Conto Encanto: a mediação de leitura.


Com a palavra, os mediadores de leitura!
(Texto elaborado em parceria com Leila Terra)

A viagem[3]


Vejo cores no papel
            Sinto letras
            Personagens, nuvens, véu
            Belas borboletas
            Uma, duas, três palavras
            Versos, poesia
            Frases, rimas e cordel
            Uma imagem que corria
            Tristeza e felicidade
            Pulsante coração
            Sinto agora uma vontade
            Por ao ar o avião
            Asas de papel
            Do avião que quer voar
            Voa solto, leve e brando
            Voa solto no ar
            Nem dá mais medo
            Tomo gosto pelo salto
            E cada vez mais cedo
            E cada vez mais alto

“Foi um curso? Não teve cara de curso” (Mazu Gonçalvez).

Esta sensação foi explicitada por vários mediadores de leitura que participaram dos encontros de formação realizados uma vez por semana, durante dois meses do ano de 2010. Foi um curso!

No momento em que o vivido se transforma em experiência através desta publicação, vale indagar: se nossos encontros não tiveram “cara de curso”, tiveram cara de quê? E por quê?

Nas palavras que registram a memória dos mediadores de leitura encontram-se elementos preciosos para a reflexão sobre os contos e encantos deste Projeto. Como afirma Walter Benjamin (1994, p.37),

“um acontecimento vivido é finito, ou pelo menos encerrado na esfera do vivido, ao passo que o acontecimento lembrado é sem limites, porque é apenas uma chave para tudo o que veio antes e depois.”

“Cada encontro foi uma viagem muito marcante” (Edilaine R. de Aguiar Martins), que trouxe imagens, cheiros e sabores do passado. Ao rememorar as primeiras experiências de leitura, lembranças da infância foram resgatadas. Coisas que a gente perde no caminho, talvez pelo ritmo alucinante imposto pelo mundo em que vivemos. Ao compartilharmos nossas leituras, “compartilhamos um pouco de nós” (Leila Maria Sá Soares).

“Lembranças do meu tempo de ‘primário’, povoaram meus pensamentos o tempo todo. (...) Quando fazia minhas leituras deitada no chão da garagem de casa e viajava pela ‘Ilha Perdida’, pela ‘Mina de Ouro’, pela ‘Montanha Encantada’, com o ‘Pequeno Príncipe’, com o ‘Cachorrinho Samba na Fazenda’ ou na ‘Floresta’(...). Eu havia me esquecido de tudo isto, do prazer da leitura e da minha garagem” (Francislei Pinheiro Damásio).

“Meu entusiasmo tem a ver com lembranças gostosas, como se eu tivesse voltado (...) para o alto de uma árvore onde passei minha infância, fugindo do chamado das pessoas que me procuravam, só para terminar uma leitura gostosa sem ser interrompida” (Cristiane M. Santana).

Além da experiência de leitura individual e deliciosamente solitária, foi resgatada a voz (e a presença) única, reveladora e inesquecível de quem contava histórias ou mediava o contato encantado e prazeroso com o livro.

"Lembrança da minha mãe mediando histórias e contando histórias de boca para mim na infância, sua voz...” (Mazu Gonçalvez)

“Lembrei (...) das histórias que minha tia me contava de boca, na cama dela, quando eu dormia lá” (Adriane Batista Delibo).

Algumas leituras guardadas num passado já distante foram revisitadas e livros queridos voltaram a ter espaço na biblioteca da casa, aquela que deixa os clássicos[4] universais e os clássicos pessoais ao alcance dos olhos e das mãos.

“(...) Lembrei dos livros que me marcaram na infância e adolescência e reli os mais importantes para mim. (...) Também resgatei com meu pai outros de meus antigos livros infantis que estavam esquecidos na casa dele” (Adriane Batista Delibo).

“A oportunidade de compartilhar a minha relação com o livro ‘O Pequeno Príncipe’, de Antoine de Saint – Exupéry por meio da mediação de leitura para toda a turma [de mediadores do CRAS Norte, do Município de Várzea Paulista], foi sem dúvida alguma, para mim, o momento mais especial” (Leandro Gonzaga).

“Com aquele livrinho em minhas mãos [o cordel, Romance do Pavão Misterioso] foi como se eu tivesse voltado ao passado! Consegui sentir até o cheiro que pairava no ar nos instantes em que meu pai lia para mim” (Nanci Alzira da Silva).

Nas narrativas pessoais e intransferíveis, geralmente relacionadas à vida escolar, também ficaram registradas as vivências de leitura não como dádiva, mas como obrigação.

“Livros de literatura?! Eram apenas para fazer resumos e avaliações. O prazer estava apenas na nota” (Viviane Cardim).

“A professora má me obrigando a pegar um livro qualquer para ler. (...) Lembro-me como se isso tivesse acontecido há cinco minutos” (Adriana Sales dos Santos).

O livro, antes odiado, foi lido finalmente e ficou a certeza de que “a forma como se apresenta um livro para outrem precisa ser mágica, encantada e não como obrigatoriedade” (Adriana Sales dos Santos). Dito em outras palavras, a história apresentada como um presente se transforma num momento fora dos momentos: uma fantástica viagem. Como preço dessa viagem: “a gratuidade, que é a única moeda da arte” (Pennac, 1998, p.34). Encontramos, talvez, uma das chaves para entender porque os momentos de formação deixaram a sensação de encantamento.

“(...) [Foi] como se nesses momentos eu me retirasse do mundo concreto e aceitasse uma passagem para um mundo imaginário tão real quanto o primeiro. Aparentemente uma contradição, mas para mim completamente verdadeiro...” (Janaína Rosa Generali).

Um presente. Foi assim que o Projeto Conto Encanto foi pensado, desta forma ele foi recebido pelos mediadores de leitura, pelas crianças/ouvintes do município de Várzea Paulista e é assim que acreditamos que a atividade de mediação de leitura deve ser oferecida a um público de 0 a 290 anos.

“Aos poucos fui notando que dia após dia; mediação após mediação, as crianças passaram nos cobrar a realização de mais e mais rodas de leitura” (Leandro Gonzaga).

“Pude perceber um aumento exorbitante no número de vezes que as crianças [frequentadoras do CREAS] vão às prateleiras para folhear e ler os livros. Prateleira essa, que antes ficava basicamente como decoração em nossa brinquedoteca. (...) Hoje a leitura tornou-se um hábito no dia-dia dessas crianças e eu, sinceramente, acredito que delas surgirão outros mediadores de leitura” (Elaine Microni de Mello Boriero).

“Eu não esperava que a mediação de leitura pudesse se tornar um presente e jamais me imaginei presenteando alguém com uma história. Agora essa idéia, esse desejo não sai da minha cabeça, tampouco do meu coração... Fui tocada por uma varinha de condão!” (Mazu Gonçalvez).

“E esta história entrou por uma porta, saiu pela outra e quem quiser que conte outras!”


Referências bibliográficas

BAJARD, Élie. Caminhos da escrita – Espaços de aprendizagem. 2a ed. São Paulo: Cortez, 2002.

BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução Sérgio Paulo Rouanet. 7a ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.

CATENACCI, Vivian Silva. "O que é mediação de leitura". In: ContoEncanto: Promover a leitura e o gosto pelos livros, Várzea Paulista: Projeto ContoEncanto, 2011, pp. 13-23.

____________. “O vôo dos pássaros: uma reflexão sobre o lugar do contador de histórias na contemporaneidade”. Dissertação de Mestrado defendida no Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), maio de 2008.

MATOS, Gyslaine Avelar; SORSY, Inno. O ofício do contador de histórias. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

PAMPLONA, Rosane. Era uma vez... três! Histórias de enrolar. São Paulo: Moderna, 2005.

PENNAC, Daniel. Como um romance. Rio de janeiro:Rocco, 1998.

PRIETO, Heloisa. Quer ouvir uma história? – Lendas e mitos no mundo da criança. São Paulo, Ed. Angra, 1999.

ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz. Trad. Amálio Pinheiro, Jerusa Pires Ferreira. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.









[1] Fórmula introdutória utilizada por contadores de histórias na Calíbia. (Matos; Sorsy, 2005, p.135)
[2] Seguindo a conceituação de Bajard (2002), é qualificado como leitura — pública ou solitária; silenciosa ou em voz alta — o ato de construção de sentido a partir de um texto desconhecido.
[3] Poema de autoria de Mazu Gonçalvez, arte-educadora da APAE de Várzea Paulista, foi escrito a partir das experiências compartilhadas durante os encontros de formação e entregue como um presente para as formadoras Vivian Catenacci e Leila Terra.
[4]Segundo Heloisa Prieto (1999, p.35) um clássico, seja universal ou pessoal, é “a história de que nunca se esquece, a história que nunca se esgota, a história para a qual sempre voltamos em busca de um encontro íntimo, de um momento secreto de troca”.